segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Simbionte

A casa de janelas cansadas não bastava, nem a cerca, nem o jardim. Tudo ali era desinteressante, fraco. Por fora a casa era obesa, seus quartos eram desnutridos, na cozinha havia apenas facas, gelo e um filtro de água e para comer só caldo ralo. Viver ali doía: Pisar naquele chão de cacos, dormir numa cama de um prego só. Era inevitável que renegasse sua morada.
Então decidiu que viveria numa casa alheia. A busca foi rápida, achava que qualquer casa seria melhor que aquela que o espostejara toda a vida.
Passando por uma rua clara e um pouco barulhenta viu de longe um casarão pintado de vermelho vivo, correu até ele e entrou. O lugar estava cheio, mas ele adorou, então resolveu ficar, sem avisar os donos, sem pagar aluguel, ocupou silenciosamente. Nos primeiros dias foi feliz como nunca fora, balançar-se na rede o fazia recordar sua mãe, quando o ninava antes de dormir, dormiria adulto pela primeira vez.
Estava ficando mais corado, os dias iam passando e ele tomando corpo. Mas não podia ser visto pelos outros moradores ou então iam expulsá-lo e ele não teria pra onde ir, senão voltar pra sua casa miserável.
Passados outros dias ele já não conseguia comer nem dormir. Não havia tempo, tinha de se esconder sempre: Saia de trás da porta para baixo da cama, corria pelo corredor, se enfiava no vão da pia. As crianças estavam acostumadas com esses lugares secretos, eram seus cúmplices em seus castelos de pique - esconde. Mas os adultos não teriam piedade na tortura, então ele fugiu.
Frustrado com a fuga e com medo, ficou prostrado na frente da casa em que não cabia, era doloroso demais ter que regressar. Mais cedo ou mais tarde as paredes engordariam tanto que morreria sufocado durante o sono, era o que ele pensava. Gritou duas vezes: - Qualquer uma, menos você!
Quantas casas? Mil fugas era a resposta aproximada. Algumas vezes chegou a ser descoberto, trocou tapas, socos, tiros até, com os donos, mas sempre fugiu.
Pensava em voltar, mas sua casa estava cada vez mais longe, na verdade nem sabia mais o caminho de volta e o medo do retorno era maior que o sofrimento das fugas.
Naquela cidade, a noite era habitada por todos os monstros mitológicos, e não havia cidadão que se atrevesse a dormir na rua, pois uma vez apaixonado por um dos monstros, a morte não tardaria cinco dias.
Eram seis da tarde e o sol estava baixo. Ele nunca havia demorado tanto para encontrar pelo menos um casebre, mas já estava ficando sem opção e a cidade estava de sobre aviso a respeito de suas invasões.
Começou a correr, a noite vinha, dois minutos. Desceu a ladeira da rua velha, cortou em dois movimentos a praça central, viu uma mureta branca com um portão de madeira no centro. A mureta era muito alta, não conseguiria pular e, se arrombasse o portão, seria descoberto. Mas não precisou: O portão estava fechado com uma tramela, colocada do lado de fora.
Era a casa mais linda que já havia visto, gigante, portátil, luxuosíssima. Tomou cuidado para que ninguém o visse. Demorou três dias para ter certeza de que a casa estava vazia mesmo.
No quarto dia viu o único morador sentado no jardim. Nesse momento explodiram febres em sua boca, ele se apaixonou, era um monstro o morador. Deu alguns passos na direção do amado, contendo a respiração. O monstro virou e abriu um belo sorriso. Mais dois passos: Estavam se beijando, fortemente abraçados. Ele derramou algumas lágrimas que molharam as bocas, então o beijo acabou e ele estava dissecado. O Monstro abriu a boca enorme e fez um movimento rápido, com o qual arrancou a orelha esquerda dele. Um grito rasgou as vias do ar, e o sangue corria pelo pescoço, fazendo um cordão que escorria pela nuca, circundava os ossos das costelas, chegava até as covas das costas, passava pelas nádegas e empoçava perto das coxas. Era uma sensação excitante, que arrepiava os pelos de seus braços.
Correu pelos corredores, deixando o rastro sentimental. Chegou ao fundo da casa onde havia um muro gigante que, em dois movimentos, pulou sem nenhuma dificuldade. Correu com tanta força, correu com esperança, e sentia no solo as pisadas do monstro em seu encargo. Era madrugada e nem havia se dado conta de quantos monstros estavam perambulando pelas ruas. Não viu nenhum. Correu cruelmente, esfolando-se, com um choro desesperado que o fazia tremer o corpo todo, mas não parava, foi para o único lugar em que poderia sobreviver.
Chegou à sua velha casa, atravessou a portinhola e em três passadas estava no meio do salão. Tratou de trancar todas as portas e janelas. Foi até seu quarto, pegou sua arma, e montou posto em frente à entrada principal. A casa balançava inteira com os socos do monstro, que gritava pedindo passagem. Mas ele sabia que ninguém poderia chegar ali sem saber o segredo da entrada. Aquela era a única casa da cidade com cadeado de segredo, e era impossível derrubar as paredes obesas. Mas olhou pela janela e viu os olhos do monstro, cheios de água e os grunhidos de desespero que aquela besta disparava, ensurdeciam-no. Amava demais, mas se fosse salvá-lo daquela dor, morreria. Caminhou até a porta, chegou bem perto da janela, tanto que o vidro embaçava, gritou no silêncio que a surdez produzia: - Eu te amo. E num movimento circular deu dois tiros, um em cada um de seus pés. Caiu zonzo e cheio de dor. Não ouvia mais nada. Respirando com dificuldade, olhava para o cabo da arma, no qual havia um circulo de alumínio escovado como adorno. Nunca havia se visto num espelho. Foi virando a mão ao ponto que percebeu seu reflexo. Caiu em gargalhadas histéricas ao descobrir que ele também era um daqueles monstros. Rastejou-se até o quarto, subiu na cama, e com o cabo da arma deu algumas batidas no prego que tanto o incomodara, até que ele ficasse deitado. Deitou. Dormiu em casa essa e todas as noites. Nunca mais saiu e ninguém nunca entrou, e ele nunca amou tanto na vida.