domingo, 28 de setembro de 2008

Cantarolação

No compasso hermético das indecisões eu canto.
Infalível é o dó maior, seguro na garganta
falível, ré menor dissonante na melodia.

Crispa forte a pigarra cigarreia,
no meio do ar saindo:
Cuspidela em nome do amor, Insensatez e
Chega de saudade.

E na rua, ouve-se o canto magro e alto,
canto que quase veste chapéu.
O canto do (a) passante.

Enquanto mente, sã - (o)
O corpo é do cristo, não cristão é o canto.
Mas é etéreo o som que some e se renova,
que reverbera como uma palpitação sórdida
dessas que se tem no momento do pecado original.

Segue o murmúrio gutural até o final da letra esquecida
Sem badabadás, sem abadá e sem santinho do Bonfim.
A cena é do herege que canta e mente,
mas que ganha a benção do humano ser-se,
e assim a canção não poderia ser outra.
Era tom baixo, do alto calão do lirismo bem quisto
a canção era (é) de amor:
Ah...

sábado, 6 de setembro de 2008

Semelhante ao fogo

Uma taturana entrou em meu ouvido. Eu estava deitado no gramado da faculdade, descansando, fumando, olhando, pensando e chorando. Demorei a perceber a leve cutucada no lóbulo direito, as passadas rasteiras por entre as duas argolas.
Às três da tarde de qualquer quinta-feira não se esperam visitas. Não se espera nada. Eu, porém, esperava a salvação, e ela veio, com forma, ácido e calor.
Quando percebi que havia uma taturana dentro do meu ouvido, pedi-lhe delicadamente que saísse, mas taturanas não costumam ser gentis ou educadas. Então peguei um lápis e enfiei no ouvido, tentando expulsá-la. Mas só fiz piorar aquela situação, o bicho entrou mais fundo ainda em minha cabeça, mas ali, no fundo, ela não me incomodava não, nem a sentia, mas o saber de que uma taturana havia entrado em meu ouvido me perturbava, afinal, quem pode viver com uma taturana dentro da cabeça?

Um tesão repentino me veio. Ela começou a se esfregar nos labirintos e sussurrava alguma coisa incompreensível e uma libido tremenda me tomava. Porém meu corpo não a manifestava, contive o suspiro, o gemido e a ereção.
Um flerte despretensioso acontecia dentro do meu ouvido e um sorriso safado me brotava à boca. Salivei sobre meu dedo mindinho e fui alimentá-la de beijo, de amor e de sexo.

Um amigo que passava parou e me cumprimentou. Olhei para ele com certo terror, misturado com temor e vergonha. Mas ele logo se foi e o sufoco no peito passou. Quem me entenderia, ou perdoaria?

A língua prepotente me lambia. Contudo, não sabia se de fato era uma língua, poderia ser uma pata, uma antena, um pênis, uma vagina, realmente não sei o que foi. Não entendo da anatomia das taturanas, mas me sentia lambido. Pensei estar tomado pelo mais terrível dos demônios, mas era apenas eu. Eu, meu sadismo, minha tristeza, meu amor, meu tesão e a taturana.
De repente ela parou com o rebuliço e começou seu ato de revelação: - Sempre te olhei, de dia, de noite, mas, pequenina que sou você nunca me viu.
Fiquei em silêncio, não por querer, mas por não saber ou sequer ter o que responder-lhe.

- Você está ai? Sei que está, sei que você me sente forte e alucinadamente.
- É, mas eu não posso falar com você, não é certo.
- Então pense apenas, e eu te escuto.

Que coisa tão ridícula, uma taturana entrou em meu ouvido, afetou-me e me descobriu.
Comecei a pensar em suicídio para ver se lhe punha medo. Não. Tentei pensar em imagens de guerras, mutilados, peixe podre, fezes, em imagens minhas. Mas ela não saia, não se movia, ela apenas amava.
As taturanas não amam como os humanos, elas amam por puro amor. Não se incomodam, não pedem, não machucam, não se apavoram, não choram, mas amam, aquecem e transam muito bem.

Minha perturbação era, portanto, com o meu amor, que, impossível de ser escondido de seu alvo, impossível também era abrandá-lo. Porque amor se sente no cérebro. Uma vez amando, eu estava alucinadamente feliz. A felicidade me fazia rir e a ela também. Mas eu não poderia cultivar esse amor de taturana, só sabia do amor humano. O que seria da minha vida? Chamariam-me de louco, internariam-me num manicômio, mas menos pelos outro e, verdadeiramente por mim, é que não poderia seguir com esse sentimento.
Mas em cada espaço de segundo eu amava mais e mais aquele animal. Amava tanto, amava tão humano que a taturana começou a enlouquecer, a sufocar. Ela gritava em meus tímpanos.

De tanto amor, ela correu para fora de mim. Tentei, sem sucesso, tapar o ouvido, mas ela se lançou no ar, saltando da ponta mais estreita do lóbulo. Suicida. Movia-me de solavancos no gramados, batia com as mãos nas folhas e gravetos, meus olhos cheios de lagrimas, o peito doendo, algum liquido na garganta querendo ser regurgitado. Minha respiração fustigava e doía, por Deus, doía muito. Eu procurei por horas, e não encontrava, não encontrava nada. Quando o sol já baixava, e minhas unhas estavam pretas de terra, eu reparei numa folhinha caída que me chamou a atenção por sua cor roxa, diferente das outras verdes. Tomei-a com cuidado, trouxe-a para perto dos olhos. Reprarei que era um recado e tentei ler o que estava escrito. Terror, surpresa e amor:

“Agora me é impossível, mas debaixo de sete palmos eu te encontro, te amo e te tomo”.