terça-feira, 11 de novembro de 2008

Rosa mística

Os amigos estavam preocupados com M.F, cada dia se mostrava mais magro e viciado em remédios para dormir. Estava pesando menos de cinqüenta quilos, e para um homem de mais de um metro e setenta e cinco, esse peso era sinal de uma doença segundo o médico do pronto socorro que o atendeu na quinta-feira em que desmaiou subitamente.

É mesmo assim: uma pontada, um visgo de amargura, ou de insegurança e começa o riso. Rio amaro que prepara o banquete.

Na casa da mãe sempre comia o que lhe era servido. Nunca falava à mesa, respondia sempre que lhe faziam uma pergunta com um aceno de cabeça.

Porque me preocupo com aquilo que não faz parte de mim, mas infelizmente eu não me satisfaço apenas de mim, se conseguisse viver só de ego, eu praticaria algum autocanibalismo versátil: num dia um pedaço de perna, noutro um cozido de olhos, e aos domingos um jantar com cérebro assado e coração ao vinho branco. Mas do físico mesmo não posso comer.

Omeoprazol ajudaria com os vômitos. Mas precisaria procurar um psicólogo, seu grande problema era de fundo emocional, lhe dizia a mãe, sempre que o via.
Saiu cedo para ir ao médico. No meio do caminho viu um anúncio, no qual se vendia uma vitrola de discos de vinil.

E sinto, e quero que todos e tudo ao meu redor me atinjam, e me firam de morte muitas vezes, retalhando os pedaços da carne, do espírito, do desejo, para eu me nutrir.

Rio discretamente, pegou o celular e discou para o número no anúncio, em menos de uma hora estava num antiquário do centro comprando o aparato. Aproveitou também para comprar alguns vinis.
Voltou para seu apartamento, instalou rapidamente a vitrola e passou toda a tarde ali.

Daquele riso, que parece sair com naturalidade e furor, fica em mim, na verdade, o emblema das rugas que me faz nos olhos. São meus dentes amarelos tentando morder um pedaço de alegria, espostejando o mínimo deste ser amoroso, mas quando sento à mesa com o homem sorridente,vejo um desespero manho, tamanho desmentido, desmedido é ele em mim.

Alguma canção passava por sua cabeça, mon amour, ele repetia. Mas na vitrola tocava Beatles. Because, era essa a música.
Enquanto repetia o estribilho em voz baixa, se curvou e tomou da estante um bíblia que sua mãe havia deixado. Abriu no evangelho de Marcos.

Um pouco alcoolizado de entusiasmo, claro! Um entusiasmo divino, assim existe, só, na crença e na vontade empírica. Meu Deus existe.
Rogo para estar sempre gozando. Que meu sexo não me aflija mais que meu amor e que o gemido seja ouvido como canto de louvor. Orar antes das refeições faz bem para a digestão.

O peito dele palpitou, Golden Slumbers tocava, ele pensava numa canção da infância, uma qualquer dessas que as mães gostam de cantar para os filhos, mas só conseguia se lembrar da melodia e a confundia com as palavras "and I will sing a lullaby".
Fechou a bíblia, caminhou até a porta do apartamento, deu meia volta e entrou no banheiro. Alí sentou-se e calou-se, e tocava Beatles, e morreu ali mesmo, com oitenta e dois anos.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Ontem

Não vou dizer do imutável porque isso é burrice. Nem lamentar sua imutabilidade, porque isso é pequenez. Advirto que o tempo é cheio de pormenores que se escondem entre os segundos, e aí é que estão guardados os meus tesouros.
Confesso que gostaria de ter mais ódio, porque ele seria a maneira mais certa de manter a consciência e a identidade que sempre me fogem. O oposto é terrivelmente estático, mas não creio que imutável, porque eu não sou burro.
Esses dias me apresentei ao espelho. Eu conheço e reconheço muitas vezes meu torpe olho esquerdo. É o lado esquerdo esse maldito hemisfério quente que de tanto afago faz delirar.
Essa febre está me dando calafrios, sinto, no meio do calor desse trópico, um frio cru. Preciso matar um leão, arrancar-lhe a pele e me aquecer.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Quanto custa o balão de oxigênio?

Reparei, e não faz muito tempo, que existe certo tipo de vontade geral de não ser. Ou pode-se dizer de uma vontade de ser ninguém. Absolutamente, todos nós tentamos afirmar nossas personalidades complexas e únicas, que são baseadas nas vivências múltiplas de nossas histórias de vida, e sobre estas, os anseios se argumentam nas frustrações e perdas muito mais que em qualquer alegria. Há uma melancolia generalizada, mesmo que disfarçada na maioria das personas.
Eu, Diego, penso então que essas farpas que me disparam, com o tambor dos olhares, dos dedos, e sobre tudo, da boca são ligeiros flashes de alguma vontade velada. Corrompidas lascas transgressoras da vida morta. Inseminação artificial da vida em quem não é morto, mas morre. (E como morre! Morre muito, morre ulteriormente, superficialmente, neuronicamente, capilarmente, morre tudo muito!). É claro que a primeira reação que tenho é a raiva, mas tão logo ela desaparece, porque eu me questiono que também sigo o fluxo geral como qualquer um, e só não digo que sou como qualquer ser humano porque isso seria um pecado original. Sou diferente, único, e ninguém pode me conhecer de verdade. Nem eu mesmo. (Ó mundo, vasto mundo)
Mas certas músicas parecem tocar para minha dança. E na dança dessa gente como eu, reafirmo, o passo é marcado em compassos enclíticos. Um, dois, um dois, um, um, um. Nas razões verdadeiras – porque razão é razão – da nossa jovialidade tão bonitinha, tão festejadinha, tão macaquinha, preferimos nos defrontar com a carne do conhecimento de Proust e de Verlaine, de Shakespeare e de Homero, de cada mãe e pai, mas nunca de seu – meu – cérebro. A sorte é que sentimos mesmo com o cérebro e o coração não passa de uma bomba.
Pois que identificado, para mim apenas, já que minha idéia não vale nada – se afirmasse que vale muito, destruí-la-ia – que há algum vapor barato no ar, difundindo a loucura comprada ou baixada em arquivos compactados, resta-me arrumar um balão de oxigênio, e sair por aí dando a noticia que há uma epidemia. Que a peste veio para nos fazer pagar pelos muitos pecados cometidos. Mas prefiro ficar doente, afinal, se são ficasse, me chamariam de louco narcisista, e eu tenho medo de não ficar louco.

domingo, 12 de outubro de 2008

Soneto do homem

Primeiro veio à luz dos dentes meus
a palavra que cria esse estribilho.
E pela cruz certeira dos ateus:
a fé que me conduz ao cru martírio

nascido da boca em pus de algum deus
que ensinou bem o mal a mim, o filho,
feitor de fabricados Pirineus
enterrados feito sangue sem brilho.

Sob ela, inevitável humanidade,
resta-me aceitar o fardo que é a dor
de sentir que perfeição e divindade

são quereres que nutrem um tumor.
Mas quase me esqueço na insanidade,
que do homem, por sê-lo, concebo o amor.

domingo, 28 de setembro de 2008

Cantarolação

No compasso hermético das indecisões eu canto.
Infalível é o dó maior, seguro na garganta
falível, ré menor dissonante na melodia.

Crispa forte a pigarra cigarreia,
no meio do ar saindo:
Cuspidela em nome do amor, Insensatez e
Chega de saudade.

E na rua, ouve-se o canto magro e alto,
canto que quase veste chapéu.
O canto do (a) passante.

Enquanto mente, sã - (o)
O corpo é do cristo, não cristão é o canto.
Mas é etéreo o som que some e se renova,
que reverbera como uma palpitação sórdida
dessas que se tem no momento do pecado original.

Segue o murmúrio gutural até o final da letra esquecida
Sem badabadás, sem abadá e sem santinho do Bonfim.
A cena é do herege que canta e mente,
mas que ganha a benção do humano ser-se,
e assim a canção não poderia ser outra.
Era tom baixo, do alto calão do lirismo bem quisto
a canção era (é) de amor:
Ah...

sábado, 6 de setembro de 2008

Semelhante ao fogo

Uma taturana entrou em meu ouvido. Eu estava deitado no gramado da faculdade, descansando, fumando, olhando, pensando e chorando. Demorei a perceber a leve cutucada no lóbulo direito, as passadas rasteiras por entre as duas argolas.
Às três da tarde de qualquer quinta-feira não se esperam visitas. Não se espera nada. Eu, porém, esperava a salvação, e ela veio, com forma, ácido e calor.
Quando percebi que havia uma taturana dentro do meu ouvido, pedi-lhe delicadamente que saísse, mas taturanas não costumam ser gentis ou educadas. Então peguei um lápis e enfiei no ouvido, tentando expulsá-la. Mas só fiz piorar aquela situação, o bicho entrou mais fundo ainda em minha cabeça, mas ali, no fundo, ela não me incomodava não, nem a sentia, mas o saber de que uma taturana havia entrado em meu ouvido me perturbava, afinal, quem pode viver com uma taturana dentro da cabeça?

Um tesão repentino me veio. Ela começou a se esfregar nos labirintos e sussurrava alguma coisa incompreensível e uma libido tremenda me tomava. Porém meu corpo não a manifestava, contive o suspiro, o gemido e a ereção.
Um flerte despretensioso acontecia dentro do meu ouvido e um sorriso safado me brotava à boca. Salivei sobre meu dedo mindinho e fui alimentá-la de beijo, de amor e de sexo.

Um amigo que passava parou e me cumprimentou. Olhei para ele com certo terror, misturado com temor e vergonha. Mas ele logo se foi e o sufoco no peito passou. Quem me entenderia, ou perdoaria?

A língua prepotente me lambia. Contudo, não sabia se de fato era uma língua, poderia ser uma pata, uma antena, um pênis, uma vagina, realmente não sei o que foi. Não entendo da anatomia das taturanas, mas me sentia lambido. Pensei estar tomado pelo mais terrível dos demônios, mas era apenas eu. Eu, meu sadismo, minha tristeza, meu amor, meu tesão e a taturana.
De repente ela parou com o rebuliço e começou seu ato de revelação: - Sempre te olhei, de dia, de noite, mas, pequenina que sou você nunca me viu.
Fiquei em silêncio, não por querer, mas por não saber ou sequer ter o que responder-lhe.

- Você está ai? Sei que está, sei que você me sente forte e alucinadamente.
- É, mas eu não posso falar com você, não é certo.
- Então pense apenas, e eu te escuto.

Que coisa tão ridícula, uma taturana entrou em meu ouvido, afetou-me e me descobriu.
Comecei a pensar em suicídio para ver se lhe punha medo. Não. Tentei pensar em imagens de guerras, mutilados, peixe podre, fezes, em imagens minhas. Mas ela não saia, não se movia, ela apenas amava.
As taturanas não amam como os humanos, elas amam por puro amor. Não se incomodam, não pedem, não machucam, não se apavoram, não choram, mas amam, aquecem e transam muito bem.

Minha perturbação era, portanto, com o meu amor, que, impossível de ser escondido de seu alvo, impossível também era abrandá-lo. Porque amor se sente no cérebro. Uma vez amando, eu estava alucinadamente feliz. A felicidade me fazia rir e a ela também. Mas eu não poderia cultivar esse amor de taturana, só sabia do amor humano. O que seria da minha vida? Chamariam-me de louco, internariam-me num manicômio, mas menos pelos outro e, verdadeiramente por mim, é que não poderia seguir com esse sentimento.
Mas em cada espaço de segundo eu amava mais e mais aquele animal. Amava tanto, amava tão humano que a taturana começou a enlouquecer, a sufocar. Ela gritava em meus tímpanos.

De tanto amor, ela correu para fora de mim. Tentei, sem sucesso, tapar o ouvido, mas ela se lançou no ar, saltando da ponta mais estreita do lóbulo. Suicida. Movia-me de solavancos no gramados, batia com as mãos nas folhas e gravetos, meus olhos cheios de lagrimas, o peito doendo, algum liquido na garganta querendo ser regurgitado. Minha respiração fustigava e doía, por Deus, doía muito. Eu procurei por horas, e não encontrava, não encontrava nada. Quando o sol já baixava, e minhas unhas estavam pretas de terra, eu reparei numa folhinha caída que me chamou a atenção por sua cor roxa, diferente das outras verdes. Tomei-a com cuidado, trouxe-a para perto dos olhos. Reprarei que era um recado e tentei ler o que estava escrito. Terror, surpresa e amor:

“Agora me é impossível, mas debaixo de sete palmos eu te encontro, te amo e te tomo”.