Vivíamos em uma casa que mais parecia um porão. Na verdade, era de fato um: ficávamos na parte de baixo de um sobrado. Na parte de cima morava a dona de todo o edifício com seus filhos e cães, e nós no espaço inferior, que se dividia em um quarto-sala, onde dormiam meus pais, uma cozinha estreita e o quarto onde dormíamos minha irmã e eu. O lugar era todo retangular: os quartos nas pontas e a cozinha no meio, servindo também de hall. De frente para nosso quarto, meu e de Tata, estava o banheiro: um corredor claro, de azulejos amarelos e louça branca.
Eu passava horas sentado no chão, encostado em minha cama. Era início dos anos noventa e os aparelhos eletrônicos eram novidade. Não se falava em cd e a idéia de computador era muito distante, completamente industrial. Havia uma vitrola-maleta em meu quarto, uma vitrolinha velha, que me acompanhava nas tardes, perdida entre jogos Lego de montar, bonecos de super-heróis e as barbies que roubava de minha irmã. Nessa vitrola eu escutava alguns vinis que tínhamos em casa. Às vezes tocava algumas músicas infantis, mas o que eu mais gostava eram os vinis de musica estrangeira, com as cores fortes das capas e as palavras estranhas que se misturavam ao som picante e convidativo. Brincava com as vozes e com o ritmo, acelerando e desacelerando a rotação do vinil. Sentia-me em paz com a minha vitrola, os blocos de montar e os bonecos, mas tinha que roubar alguns pregadores de roupa de minha mãe, para completar o arsenal.
As brincadeiras da tarde eram as horas mais alegres do dia, mas também as mais cínicas. (Há maior cinismo do que anunciar o óbvio por vir?).
O pequeno vitrô do meu quarto dava para um corredor que pertencia à casa de cima e minha cama ficava encostada à parede, em baixo desse vitrô. A noite entrava e eu demorava muito para dormir, minha irmã me mantinha acordado: - Tato, você está acordado? Eu respondia que sim. Ela vinha então e reacendia com a réplica: - Quando você dormir, me avisa? Às vezes respondia que sim, outras vezes fazia um "aham". Ela sempre dormia antes.
Os cachorros da casa de cima tinham uma insônia maior que a minha e, com suas sombras, passavam a noite marcando território nas paredes de nosso quartinho. Isso quando não colocavam o focinho nas aberturas do vitrô. Minha irmã entrava em pânico sempre que isso acontecia. Aqueles cachorros foram os primeiros seres que eu odiei na vida.
No meu aniversário de cinco anos resolvi que teria uma festa só minha, uma festa noturna. A idéia foi deixar a vitrola tocando até que eu dormisse, e depois, como o vinil acabaria antes da noite, de manhã mamãe não perceberia nada. (Virei homem).
Enquanto minha mãe ralava cenouras na cozinha, para a salada do jantar, fui até o armário de discos de papai e peguei o de capa de arco-íris, enquanto Tata montava guarda na porta. Voltamos para nosso quarto sem que mamãe percebesse. Escondemos o vinil sob a colcha da cama e esperamos a noite. Faríamos uma grande festa. Até então, havia sido a única noite que eu esperei com ansiedade.
Passava das vinte horas, esperei que meus pais fechassem a porta de seu quarto. Dei o sinal para Tata, que abriu a vitrola, e então coloquei o vinil da capa de arco-íris. (Tão legal).
Ela dormiu. Eu me aventurava com alegria. Começou a tocar os meus segundos preferidos da canção, eram estranhos e inconfessáveis. De repente um latido rasgou a perfeição em que se encontrava o ambiente. Meu coração pulsou forte de raiva daqueles cães. Mais latidos. Tata não se mexeu na cama. Já me levantava para fechar o vitrô quando de repente o latido se transformou em choro e a cabeça preta do cão entrou de solavanco pelo vão e na mesma velocidade saiu. No susto voltei a me deitar, segurando forte com as pernas meu segundo travesseiro. Tentava não olhar ao mesmo tempo que os olhos corriam para o vidro sujo de vermelho. O som quebradiço se repetiu algumas vezes, e se misturava à canção. Esforçava-me para não perder nenhum lance, e tive a sensação que os sons que saiam das topadas no vitrô sempre estiveram na melodia, entremeados naqueles segundos favoritos.
O vulto negro topava contra o vidro. Novamente espremeu a cabeça dentro do meu quarto, com o focinho escancarado, a boca fechada e a língua mordida para fora, pingado baba e sangue. Olhei fixamente para o cão. Ele se desculpava, mas eu não me movi. No focinho, as narinas se abriam e fechavam com esforço, suadas. Ele me pediu um copo d ’água. Não me movi.
O outro cão rosnava bravamente do lado de fora. Eu ouvia o som que as unhas do animal faziam no chão de ladrilho, e tudo se encaixava na canção, tudo era maravilhosamente sonante e a cadência era perfeita. Tuco calou. Tata gemeu alguma coisa que não entendi. Depois devo ter dormido. Nunca mais tive insônia.
sábado, 3 de novembro de 2007
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